Imunidade do ITBI

Imunidade do ITBI

1 Introdução

Esse é um dos temas em que a jurisprudência consolidou de forma quase irreversível uma tese equivocada não distinguindo a imunidade pura, da imunidade condicionada que está expresso no texto constitucional. Os tribunais não têm reconhecido a imunidade pura exigindo-se em todas as suas hipóteses o requisito da inexistência de preponderância da atividade referida na parte final do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF. Os doutrinadores, por sua vez, não se pronunciaram sobre essa importante questão, limitando-se à abordagem do critério de apuração dessa preponderância a exemplo do que vem fazendo a jurisprudência. É o mesmo que discutir o critério de cálculo de um determinado imposto ignorando a inconstitucionalidade da norma instituidora desse imposto.

Tentaremos desfazer a confusão que parece ser irreversível a essa altura, interpretando o preceito constitucional da imunidade do ITBI em harmonia com a legislação infraconstitucional. Esse equívoco consagrado pela jurisprudência decorre do erro de interpretação gramatical, de um lado, e de erro de interpretação jurídica, de outro lado, como veremos mais adiante.

2 O que prescreve o texto constitucional

A Constituição Federal ao outorgar a competência impositiva do ITBI aos municípios, além de prescrever as limitações do poder de tributar de forma genérica que devem ser observadas por todos os entes políticos componentes da Federação Brasileira, prescreveu limitações específicas para exercício de competência tributária em relação a esse imposto local.

Para melhor exame transcrevamos o texto do Art. 156, II e § 2° da CF:

“Art. 156. Compete aos municípios instituir impostos sobre:

(…)

II – Transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

(…);

2º – O imposto previsto no inciso II:

I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capitalnem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;”

Convém esclarecer, desde logo, que as expressões “não incidência” e “isenção” quando empregadas no texto constitucional está a significar imunidade, salvo nas hipóteses em que a Carta Política se refere à “não incidência” para expressar sentido próprio, como não hipótese da operação interestadual de petróleo, lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados e energia elétrica para favorecer a Estado consumidor (art. 155, § 2°, X, da CF).

Da leitura do inciso I retrotranscrito verifica-se com solar clareza a sublimitação da competência tributária municipal em relação ao ITBI. Vislumbra-se, outrossim, as duas espécies de imunidade abrigadas nesse texto constitucional.

Nos tópicos subsequentes examinaremos essas duas espécies de imunidade do ITBI mediante interpretação gramatical e interpretação jurídica de conformidade com o exame do ordenamento jurídico global.

3 Da interpretação gramatical

No inciso I, do § 2° o legislador constituinte estabeleceu a imunidade pura em sua parte primeira, e na segunda parte, separada pelo advérbio “nem” prescreveu a imunidade qualificada, ou seja, salvo se a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda de bens imóveis, locação de imóveis ou arrendamento mercantil. Nessas hipóteses a imunidade não prevalecerá.

O advérbio “nem” em lugar do conectivo “e” separa as duas modalidade de imunidade: a primeira de forma incondicionada e, a segunda, de forma condicionada.

Assim, pelas regras de interpretação gramatical o inciso I é composto de duas partes determinando que o ITBI:

a) não incide sobre a transmissão de bens e direitos incorporados ao patrimônio de pessoas jurídica em realização de capital;

b) nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa Jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.

A expressão “nesses casos” não abrange a hipótese da primeira parte separada pelo advérbio “nem”, mas apenas as hipóteses da segunda parte que pressupõem a existência de duas ou mais pessoas jurídicas, com exceção da hipótese de dissolução. Não há como uma empresa incorporar a si próprio, nem uma empresa promover cisão sem implicar criação de uma outra empresa. Na hipótese de conferência de bens envolve sempre uma única empresa em constituição ou uma empresa já existente, quando ocorre a elevação de capital a ser integralizado mediante dação de bens imóveis.

A incorporação de bens imóveis na pessoa jurídica em decorrência de realização de seu capital social não se confunde com o instituto da incorporação que implica incorporação de bens imóveis da pessoa jurídica incorporada para a pessoa jurídica incorporadora.

Nessa modalidade de imunidade absoluta, consoante escrevemos “o que a norma imuniza não é qualquer incorporação de bens ou direitos ao patrimônio da pessoa jurídica, como acontece normalmente com a compra e venda, por exemplo. A imunidade diz respeito exclusivamente ao pagamento em bens ou direitos que o sócio faz para integralização do capital subscrito. Pode ocorrer essa integralização, tanto no início da constituição de pessoa jurídica, como também posteriormente por ocasião do aumento de capital.” [1]

4 Da interpretação Jurídica

Aqui é importante relembrar a lição do saudoso jurista Geraldo Ataliba que nunca se cansava em dizer que o jurista deve desenvolver atitude mental Jurídica, deixando de dar tratamento extrajurídico na interpretação de matéria jurídica.

É o caso. A integralização de capital de uma pessoa jurídica pelo sócio, mediante dação em pagamento de bens imóveis que por essa razão ficam incorporados[2] ao patrimônio da pessoa Jurídica absolutamente nada tem a ver com a incorporação, fusão, cisão ou extinção de pessoas jurídicas de que trate a segunda parte do inciso I sob comentado. Essas categoriais jurídicas estão disciplinadas na Lei nº 6.404/76, um dos melhores instrumentos normativos até hoje conhecidos.

A expressão “bens e direitos incorporados” não pode ser interpretada como sinônimo de incorporação. A incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica tem comocausa a integralização do capital pelo sócio, titular dos bens incorporados. Nada tem a ver com a incorporação definida no art. 227 da Lei n° 6.404/76:

“Operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações.”

Vê-se claramente que a incorporação de bens imóveis pela empresa incorporadora ocorre em função da operação jurídica de incorporação que absorve todo o patrimônio da empresa incorporada.

Na hipótese de integralização de capital não há operação jurídica de incorporação sendo que a incorporação dos bens imóveis no sentido da integração decorre da integralização do capital com bens imóveis. A “incorporação” é resultado da conferência de bens.

Na segunda hipótese, a incorporação jurídica é causa da “incorporação” de bens imóveis à empresa incorporadora. Juridicamente é impossível confundir causa com resultado!

A conferência de bens não se confunde, também, com a fusão definida no art.228 da Lei n°6.404/76:

“Operação pela qual reúnem duas ou mais sociedades para formar sociedade nova, que lhe sucederá em todos os direitos e obrigações.”

A exemplo da incorporação a fusão é a causa da incorporação dos bens da sua nova sociedade.

A cisão, por sua vez, é definida no art. 229 da Lei n° 6.404/76:

“Operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades.

Constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão”.

Neste caso a operação jurídica de cisão continua sendo a causa da incorporação de bens imóveis para empresa ou empresas que recebem parcial ou totalmente o patrimônio da empresa cindida.

Em todas essas hipóteses há envolvimento de duas ou mais pessoas Jurídicas e a incorporação de bens imóveis, sinônimo de “transmissão de bens imóveis” têm como causa as operações jurídicas “…” mencionadas definidas na Lei n° 6.404/76.

Integralização de capital subscrito com bens imóveis não é uma categoria Jurídica definida na Lei n° 6.404/76 e a incorporação aos bens conferidos ao patrimônio da pessoa Jurídica não tem o sentido de operação Jurídica de incorporação. A incorporação aí referida tem o sentido de integrar o patrimônio de pessoa Jurídica por força de transmissão de propriedade imóvel em pagamento do capital subscrito.

Inconfundível a “incorporação de bens imóveis” como resultado da conferência de bens com a “operação jurídica de incorporação” que é a causa da incorporação de bens imóveis ao patrimônio da pessoa jurídica incorporadora.

Finalmente resta examinar a figura da extinção de pessoa Jurídica que é também hipótese de imunidade condicionada.

Nos termos do art. 219 da Lei° 6.404/76 ela pode ocorrer em decorrência de encerramento da liquidação, da fusão, da incorporação e da cisão com versão total do patrimônio, de conformidade com as figuras jurídicas retro examinadas.

Em todas essas hipóteses a imunidade não prevalecerá se o adquirente (incorporadora, nova empresa decorrente de fusão ou cisão ou sócio no caso de extinção da pessoa jurídica) tiver como atividade preponderante a compra e venda de bens imóveis ou direitos a eles relativos, a locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.

Caracteriza-se a atividade preponderante quando mais de cinqüenta por cento da receita operacional da pessoa adquirente, nos dois anos anteriores e nos dois anos subseqüentes à aquisição decorra de Transações pertinentes aquelas atividades citadas.

5 Da jurisprudência dos tribunais

Todos os tribunais locais vêm decidindo pela aplicação do critério da preponderância da atividade imobiliária do adquirente em todas as hipóteses de imunidade do ITBI. Citemos a título ilustrativo a ementa abaixo que serve como julgado padrão:

“A imunidade em análise resta prevista no inciso I do parágrafo 2º do artigo 156 da Constituição Federal, cujo teor transcrevo:

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
(…)

§ 2º – O imposto previsto no inciso II:

I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;”

Desse modo, resta comprovado que a transmissão de bens imóveis foi realizada para integralizar o capital social da pessoa jurídica, ora apelada.

Ademais, provado também que a empresa não realizou negócios imobiliários superiores à metade da sua renda operacional, o que permitiria a incidência do ITBI, nos termos do art. 36 e art. 37, do CTN, os quais transcrevo:

“Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:

I – quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;

II – quando decorrente da incorporação ou da fusão de uma pessoa jurídica por outra ou com outra.

Parágrafo único. O imposto não incide sobre a transmissão aos mesmos alienantes, dos bens e direitos adquiridos na forma do inciso I deste artigo, em decorrência da sua desincorporação do patrimônio da pessoa jurídica a que foram conferidos.

Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.

§ 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinquenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subsequentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.

§ 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.

§ 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á devido o imposto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sobre o valor do bem ou direito nessa data.

§ 4º O disposto neste artigo não se aplica à transmissão de bens ou direitos, quando realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante.”

Por fim, o Auto de Lançamento da fl. 38 baseia-se em ressalva (não exercer qualquer atividade econômica no período apurado) que não está legalmente prevista a afastar a imunidade expressa no art. 156, § 2º, I, da CF/88. Portanto, não merece guarida.

Pelo exposto, desprovejo o apelo.” (AP cível nº 70040328304 do TJ/RS, Rel. Des. Luiz Felipe Silveira Difini).

A jurisprudência do STJ, por sua vez, vem negando conhecimento do recurso quando a discussão versar apenas sobre a questão constitucional; e quando envolver exame da questão do critério da preponderância, também vem rejeitando o recurso ao amparo da Súmula 7 do STJ que não permite o reexame de matéria fática.

Transcrevemos algumas ementas dos julgados para melhor compreensão do leitor.

“TRIBUTÁRIO. ITBI. IMUNIDADE. ART. 37 DO CTN. SÚMULA 7/STJ. ACÓRDÃO RECORRIDO COM FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL. INCOMPETÊNCIA DO STJ.

1. Hipótese em que o Tribunal de origem entendeu que a empresa recorrente não faz jus ao benefício da imunidade prevista no art. 37 do CTN, pois sua atividade é preponderantemente imobiliária.

2. Assim, para concluir em sentido contrário ao decidido pela Corte local, faz-se necessário reexame do conjunto fático-probatório do processo, o que encontra óbice no enunciado da Súmula 7/STJ:

3. Ademais, o Tribunal a quo solucionou a questão com base em matéria constitucional, in casu, no art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal, cuja revisão escapa aos limites da competência outorgada ao STJ pelo art. 105, inciso III, da Constituição Federal.

4. Agravo Regimental não provido (AgRg no AREsp 46871; Min. Relator Herman Benjamin; DJe 24-02-2012).

“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL. ITBI. INCORPORAÇÃO DE IMÓVEIS AO PATRIMÔNIO DE PESSOA JURÍDICA, EM INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. FUNDAMENTAÇÃO EMINENTEMENTE CONSTITUCIONAL DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE ORIGEM. INCOMPETÊNCIA DO STJ. ART. 37 DO CTN. ATIVIDADE PREPONDERANTE. FALTA DE INTERESSE RECURSAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ.

I. Embargos de Declaração recebidos como Agravo Regimental, em face

de seu caráter infringente, em homenagem aos princípios da fungibilidade e da economia processual. Precedentes do STJ.

II. Inviável o Recurso Especial interposto contra acórdão que decidiu a controvérsia em torno da imunidade tributária, sob enfoque essencialmente constitucional.

III. Hipótese em que o Tribunal local concluiu que a preponderância da atividade da empresa deverá ser aferida nos três anos seguintes à data da aquisição dos bens, nos termos do art. 37, § 2º, do CTN, não sendo possível reconhecer, naquele momento, a imunidade tributária, pretendida pelo contribuinte. Falta de interesse recursal do Distrito Federal, nesse ponto.

IV. É inadmissível o Recurso Especial quanto à tese não decidida pelo Tribunal de origem, a despeito da oposição de Embargos de Declaração, por falta de prequestionamento. Incidência da Súmula 211/STJ.

V. Embargos de Declaração recebidos como Agravo Regimental, que resta improvido.” (EDcl no AREsp 399064 – DF, Relatora Ministra Assusete Magalhães, DJe de 21-05-2014).

Outrossim, não temos uma posição definida perante a Corte Suprema que nas raras hipóteses em que apreciou a matéria não conheceu do Recurso Extraordinário sob o fundamento de que a questão de saber se há ou não preponderância da atividade imobiliária do adquirente é matéria que se encerra no campo probatório, sendo vedado o reexame da prova ao teor da Súmula 279 do STF. Tudo indica que não foi levada ao STF em sede de recurso extraordinário a discussão da tese de imunidade pura e incondicionada no caso de transmissão de bens imóveis em função da integralização do capital.

6 Conclusão

A jurisprudência que se formou nos Tribunais locais aplicando o critério da preponderância das atividades do adquirente para todas as hipóteses de imunidade do ITBI é praticamente irreversível. A cada questionamento aumenta-se a quantidade de julgados contrários à primeira parte do inciso I, do § 2°, do art. 156 da CF que consagra a imunidade incondicionada. No STJ a questão constitucional não é apreciada.

Resta a expectativa de reversão da tese perante o STF se abordada no Recurso Extraordinário a tese da imunidade incondicionada na hipótese de transferência de bens imóveis em realização de capital subscrito. Mas, esta é uma tese não lembrada pela doutrina vigorante que tem dado mesmo tratamento à transmissão de bens imóveis decorrente de incorporação de empresas, com a transmissão de bens imóveis decorrente de integralização do capital de pessoa jurídica que nada tem a ver com a figura jurídica da incorporação, fusão, cisão ou extinção de empresas.

Fonte: Jus.com.br
Autor: Kiyoshi Harada

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