Alguns estudiosos do direito tributário entendem ser possível a aplicação da vedação prevista no artigo 150, IV da Constituição Federal às multas tributárias. Esse é um tema de certa forma polêmico que apresenta renomados doutrinadores defendendo posições divergentes.
Este artigo tem o objetivo de trazer ao debate a discussão sobre a vedação da multa tributária com efeito de confisco. Buscaremos trazer alguns conceitos necessários a correta compreensão do tema e discorremos sobre os dispositivos legais que o envolvem.
Inicialmente, faz-se necessária a análise literal do dispositivo apresentado pelo sujeito passivo, o artigo 150, IV da Constituição Federal. Vejamos:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
IV – utilizar tributo com efeito de confisco;
A Constituição é expressa ao dizer “utilizar tributo”. E tributo não se confunde com multa. O Código Tributário Nacional em seu artigo 3º nos traz a definição de tributo como segue:
Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. (nosso grifo)
Por sua vez, multa segundo o professor Sacha Calmon “é prestação pecuniária compulsória instituída em lei, tendo por causa a prática de um ilícito, cobrada administrativamente”. (nosso grifo)
Desta forma, comparando os conceitos de tributo e multa, qualquer cidadão que busque os analisar perceberá claramente a sua distinção. Detendo-nos simplesmente a sua diferença mais relevante percebemos que tributo não constitui sanção de ato ilícito enquanto a multa é exatamente a sanção de um ato ilícito.
Portanto, não podemos confundir multa com tributo. Quando a constituição fala em não utilizar tributo com efeito de confisco, ela está sendo clara e demonstrando a vontade do legislador contribuinte em fazer essa vedação. Se a constituição quisesse fazer essa vedação com relação à multa ela teria a feito de modo expresso.
E saindo apenas da seara literal, vejamos o que diz o professor Hugo de Brito Machado, renomado doutrinador em Direito Tributário, sobre a interpretação do dispositivo sob qualquer elemento interpretativo.
“(…) qualquer que seja o elemento de interpretação ao qual se dê ênfase, a conclusão será contrária à aplicação do princípio do não-confisco às multas fiscais. Se prestigiarmos o elemento literal, temos que o art. 150, inciso IV, refere-se apenas aos tributos. O elemento teleológico não nos permite interpretar o dispositivo constitucional de outro modo, posto que a finalidade das multas é exatamente desestimular as práticas ilícitas. O elemento lógico sistêmico, a seu turno, não leva a conclusão diversa, posto que a não-confiscatoriedade dos tributos é garantia destinada a preservar o livre exercício da atividade econômica, e não é razoável invocar-se qualquer garantia jurídica para o exercício da ilicitude.” MACHADO, Hugo de Brito. Tributo com Efeito de Confisco. Revista Dialética de Direito Tributário n.º 166, Rio de Janeiro, julho/09, p. 112.
Nesta mesma linha de pensamento se manifesta o professor Misabel Abreu Machado Derzi em nota na obra de Aliomar Baleeiro, Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, atualizada por ele.
“No exame dos efeitos confiscatórios do tributo, deve ser feita abstração de multas e juros acaso devidos. As sanções, de modo geral, desde a execução judicial até as multas, especialmente em caso de cumulação, podem levar à perda substancial do patrimônio do contribuinte, sem ofensa ao direito. (…) Não se pode abrigar no princípio que veda utilizar tributo com efeito de confisco o contribuinte omisso que lesou o fisco, prejudicando os superiores interesses da coletividade. (…) Igualmente, o art. 150, IV, da Constituição Federal brasileira não transforma tributo em confisco, nem equipara esses institutos, apenas veda efeitos iguais; também não visa a proteger os incautos, omissos e infratores dos deveres jurídicos.” Nota 10.2.5, de atualização da obra de Aliomar Baleeiro. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7ª edição, atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi, Forense, Rio de Janeiro, 1997, p. 579.
Ademais, tratando-se a multa de punição pecuniária por ato infracional do contribuinte, não pode ser esta insignificante, pois sua insignificância serviria como incentivo à prática da infração a legislação. A multa tributária tem dois objetivos complementares. O primeiro de caráter punitivo e o outro de caráter educativo.
Seu caráter punitivo visa punir o contribuinte que infringe a legislação tributária aplicando a ele uma sanção pecuniária pela infração. Se esta multa possuísse um caráter diminuto não atenderia a este objetivo, pois o contribuinte infrator não se sentiria punido por ter infringido a legislação.
Quanto ao caráter educativo da multa, visa esta possibilitar ao contribuinte uma reflexão sobre sua prática infracional levando-o a conclusão de que a infração não compensa. Novamente, se a multa fosse diminuta, levaria o contribuinte à conclusão diversa da esperada, pois, concluiria este que a infração é compensatória.
Como veremos, partilha deste entendimento o professor Hugo de Brito Machado, que discorre sobre o tema o que se segue.
“Pretender-se que a multa legalmente cominada para a venda de mercadoria sem nota fiscal não seja confiscatória, mas suportável, de sorte que os comerciantes possam incluí-las nos seus custos operacionais, é pretender inteiramente ineficaz a sanção, que restará assim convertida num verdadeiro tributo de exigência eventual. (…) O princípio do não-confisco, segundo o qual é vedado ao Poder Público utilizar tributo com efeito de confisco, consubstanciado no art. 150, inciso IV, da vigente Constituição Federal, é necessário para tornar o tributo compatível com a garantia do livro exercício de atividades econômicas. Se fosse possível tributo confiscatório, estaria negada aquela garantia. Como a atividade econômica constitui o suporte mais geral da tributação, bastaria a instituição de tributo confiscatório para impedir o seu exercício. Tem-se, pois, que a garantia do não-confisco é na verdade um reforço, ou mesmo uma explicitação da garantia do exercício da atividade econômica. Às multas, porém, não se aplica aquela garantia, pois seria absurdo dizer que a Constituição garante o exercício da ilicitude. As multas têm como pressuposto a prática de atos ilícitos, e por isto mesmo garantir que elas não podem ser confiscatórias significa, na verdade, garantir o direito de praticar atos ilícitos.” MACHADO, Hugo de Brito. Tributo com Efeito de Confisco. Revista Dialética de Direito Tributário n.º 166, Rio de Janeiro, julho/09, pp. 110-111.
A meu ver, interpretações contrarias ao entendimento apresentado não encontram sustentação na legislação tributária, pois se analisarmos o Capítulo IV do Título I do Livro 2º do CTN, que trata da Interpretação e Integração da Legislação Tributária, veremos que os métodos de interpretação permitidos pelo CTN conduzem exatamente a este entendimento.
O artigo 107 do CTN determina expressamente que a legislação tributária será interpretada conforme o disposto no Capítulo IV citado acima. Portanto, o CTN não permite espaço para todo e qualquer tipo de interpretação permitida no direito. Apesar de diversos elementos de interpretação conduzirem a mesma conclusão apresentada.
A primeira regra de interpretação apresentada pelo Código Tributário Nacional é a observância à legislação, pois o artigo 108 se inicia dizendo “na ausência de disposição expressa”, ou seja, havendo disposição expressa sobre o assunto segue-se o que está disposto. Não existindo então, neste caso, espaço para interpretação diversa do disposto expressamente.
No caso de ausência de disposição expressa aplica-se a legislação análoga ao caso. Ou seja, aplica-se também a legislação, pois a analogia é a aplicação de disposição expressa aplicável em um caso a outro similar que não possui previsão legal. Vejamos a literalidade do dispositivo.
Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada:
I – a analogia;
II – os princípios gerais de direito tributário;
III – os princípios gerais de direito público;
IV – a eqüidade.
Ultrapassada a discussão quanto à inconstitucionalidade da multa com efeito de confisco e tendo o exato entendimento de cabível esta vedação apenas aos tributos, cremos necessária última análise sobre o instituto do confisco. Vejamos a definição de confisco apresentada por Rodrigo Aiache Cordeiro.
“Confisco tributário como o ato Estatal, em virtude de uma obrigação fiscal, pelo qual é injustamente transferida a totalidade ou parcela substancial da propriedade do contribuinte ao ente tributante, sem qualquer retribuição financeira ou econômica por tal ato.”
Entende-se, portanto, como confisco o ato do Estado que visa transferir a totalidade ou parcela substancial da propriedade do contribuinte ao ente tributante. Diante desta definição quando analisarmos o tributo sobre a ótica desta vedação cabe-nos questionar se este se avulta sobre o patrimônio do contribuinte de forma a se apropriar da totalidade deste ou de parcela substancial do mesmo.
Sendo assim, entendo encerrada a discussão sobre a proibição de multa com efeito de confisco, pois a Constituição Federal é clara e se manifesta de forma expressa sobre a proibição de tributo com este efeito.
Desta forma, concluímos que a multa tributária, por diferir-se da natureza jurídica do tributo e por tratar-se de instrumento punitivo do Estado, além de outras alegações apresentadas no decorrer do artigo, não está incluída na vedação imposta pelo artigo 150, inciso IV da Constituição Federal.
Isso não que dizer que o Estado está livre para utilizar-se da multa tributária para apoderar-se do patrimônio do particular. O confisco, por parte do Estado, dos bens do contribuinte se materializa como ato danoso ao interesse público, pois o empreendedor é o gerador de riqueza para a sociedade e a utilização da multa de forma a bani-lo do meio econômico não pode ser visto com bons olhos.
Portanto, faz-se claro que a multa tributária, apesar de não ser vedada como instrumento de confisco do Estado pelo artigo 150, IV do Constituição Federal, não deve ser utilizada com este fim.
Fonte: Conteúdo Jurídico
Autor: Renê Gabriel Junior