O diretor da Associação Brasileira de Direito Tributário (ABRADT), André Mendes Moreira, foi entrevistado pelo Jornal Gazeta do Povo sobre o Simples Nacional, confira:
“Não se pode concordar em criar um ‘banco estatal’ nas empresas do Simples”.
Joana Neitsch / Vinicius Sgarbe
O Simples Nacional deveria ser uma alternativa para beneficiar empresas de menor porte, para que consigam se desenvolver sem excessiva carga tributária. Mas, em tempos de crise, os benefícios para as empresas que se enquadram nesse regime entram na mira do governo. Em entrevista ao Justiça & Direito, o tributarista André Mendes Moreira explicou as consequências de iniciativas como o decreto do governo do Paraná que estabelece que empresas paguem antecipadamente o imposto por compras feitas fora do estado. Na entrevista, ele demonstrou a necessidade de se dar um tratamento realmente diferenciado de acordo com a estrutura da empresa. “Não posso submeter àquela empresa que é gerenciada por um casal e por seus filhos às mesmas regras tributárias do conglomerado que tem ações negociadas na bolsa de Nova York”, explicou o tributarista. Moreira é professor graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e esteve em Curitiba em abril, a convite Instituto Paranaense de Direito Tributário.
Quais a principais intercorrências do ICMS no Simples Nacional?
O primeiro ponto que é importante registrar é a relevância do ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] para a arrecadação dos estados. Mais de 90% da arrecadação dos estados em geral advém do ICMS. Esse é o imposto, portanto, que gera receitas para pagamento das despesas estatais, no âmbito dos estados e do Distrito Federal. Logo, os estados têm uma “dependência” muito grande do ICMS. Qualquer atitude, por mais justificada que seja sob o prisma econômico, sob o prisma da justiça tributária, que busque trazer alguma redução na arrecadação desse imposto é sempre vista com bastante reserva e cuidado por parte dos estados.
No caso do Simples Nacional, nós não fugimos à regra. O Simples é um regime simplificado de pagamento de tributos, que até 2003 não abarcava o ICMS estadual nem o ISSQN [Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza] municipal; somente compreendia esses impostos se houvesse concordância e anuência do estado e do município. Mas, a partir de 2003, passou a, mandatoriamente, obrigatoriamente, abarcar tanto o ICMS quanto o ISS por força de uma mudança na Constituição, que foi feita nesse ano [em 2003], e, posteriormente, da sua regulamentação por Lei Complementar que veio em 2006, com a atual LC 123, editada pelo Congresso Nacional – lei esta que instituiu o chamado “Super Simples” ou “Simples Nacional”.
E qual a diferença entre o Super Nacional e antigo Simples?
A grande diferença do Simples Nacional, que adveio em 2006, para o antigo Simples – que não era nacional, era apenas federal – é, portanto, a inclusão obrigatória do ICMS e do imposto municipal sobre serviços, que é o ISSQN, dentre aqueles tributos que serão pagos de forma reduzida pelas empresas qualificadas como de pequeno porte ou micro pela legislação do Simples.
A partir do momento em que isso é feito – e considerando-se que mais de 90% das empresas no país são microempresas ou empresas de pequeno porte – é fato que há uma redução na arrecadação do ICMS. Apesar de, obviamente, não se discutir o fato de que quem paga a conta do ICMS são os grandes contribuintes. É óbvio que a receita das microempresas e das empresas de pequeno porte para o estado, em matéria de ICMS, não é, nem de perto, tão relevante quanto a das dez maiores empresas em operação nos estados, que costumam ser as empresas de energia, de telecomunicações e do setor de combustíveis. Mas, de toda sorte, fato é que houve um comando aos estados para que eles aceitassem uma nova realidade, na qual eles seriam obrigados a incluir o ICMS no benefício do Simples Nacional e, com isso, acabaram perdendo certa arrecadação.
E como foi a aceitação dessa perda na arrecadação?
Num momento inicial os estados aceitaram, até porque em 2006 a economia já esboçava alguma recuperação, vínhamos de sete, oito anos de grande crescimento econômico. Mas, com o advento da crise, os estados passaram a olhar para todos os setores dos quais seria possível extrair mais dinheiro. E um deles é exatamente o ICMS que está incluso no Simples.
Mas tem volta do ponto de vista jurídico?
Tratando de um problema específico aqui do Paraná. No ano passado, o governo do estado editou um decreto – foi o Decreto 442/2015 – estabelecendo um pagamento antecipado do ICMS pelas empresas do Simples Nacional. Toda vez em que uma empresa do Simples, sediada no Paraná, comprar mercadorias de outros estados de federação – eminentemente São Paulo, onde está o nosso grande parque industrial brasileiro –, nessas compras, a empresa inscrita no Simples aqui no Paraná, assim que receber a mercadoria terá que pagar ao estado do Paraná, fora das alíquotas do Simples, com a alíquota normal do ICMS – que é às vezes é de seis a oito vezes superior à alíquota do Simples.
O ICMS é pago sempre que se vende a mercadoria. O que o decreto diz é que quando você comprar, se comprar de outro estado – porque na compra em outro estado a venda não gera ICMS para o Paraná, gera para o estado onde está a indústria . Se nesta compra não há, na origem, nenhum ICMS pago ao Paraná, o comprador, se estiver inscrito no Simples, tem que pagar ao estado do Paraná o ICMS com alíquota cheia, de 18% em média, para esse estado, antes de vender a mercadoria, sobre o preço presumido de venda.
Mas isso não complica a situação financeira das empresas inscritas no Simples?
Se nós considerarmos que a carga tributária total das empresas do Simples gira em torno de 10%, com todos os tributos, você exigir 18% na entrada significa eliminar o benefício tributário. Fora o problema gravíssimo de fluxo de caixa. Nós não estamos tratando aqui de grandes conglomerados que têm acesso a financiamentos internacionais a juros baixíssimos. Estamos tratando de empresas tocadas por famílias, ou casal, filhos, enfim, pequenas empresas mesmo, que lutam para sobreviver, que têm que pagar contas no final do mês e para isso precisam ganhar dinheiro no início do mês. Então, ao se implementar uma sistemática de tributação que foge da regra do Simples, que antecipa o pagamento do imposto para o momento anterior ao próprio recebimento do valor pela venda da mercadoria, está se cometendo algumas impropriedades.
Que tipo de impropriedades?
Primeiro, do ponto de vista formal: o estado está fazendo isso por decreto, e é impensável criar tributo, fazer uma modificação tão drástica da legislação tributária por decreto. No mínimo teria que ser por lei. Mas, mesmo que superada essa questão formal, é fato que não se pode concordar em criar nas empresas do Simples uma espécie de “banco estatal”, onde o estado se apropria do dinheiro do particular antes mesmo de o particular praticar o fato gerador do imposto, que é a venda da mercadoria. Ainda mais sem observar as alíquotas da legislação do Simples, que são em muito inferiores às alíquotas regulares que se pretende cobrar por meio desse decreto paranaense.
E como resolver essa questão? Deve-se questionar a constitucionalidade desse decreto? Solicitar que o estado passe isso para o Legislativo?
Já existe uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) ajuizada contra esse decreto. Essa ação está com o ministro Luís Roberto Barroso, foi uma iniciativa da Comissão de Direito Tributário da OAB-PR e ainda não há decisão liminar. A tendência, acredito eu, será o de deferimento da liminar, pela razão formal – ou seja, não se pode usar decreto para cobrar tributo ou modificar o momento da incidência do ICMS. Mas sem prejuízo de, caso superado esse aspecto, acredito também que o Supremo será, espero, na verdade, que o Supremo seja sensível ao princípio da justiça tributária. Não posso submeter aquela empresa que é gerenciada por um casal, por seus filhos, às mesmas regras tributárias do conglomerado que tem ações negociadas na bolsa de Nova York. São realidades distintas que merecem tratamentos tributários distintos, e esse é o indicativo da nossa Constituição.
Com relação ao e-commerce, qual é o impacto dessas mudanças?
A situação do e-commerce, por enquanto, para as empresas do Simples, está razoavelmente solucionada. Mas ainda não é em definitivo, porque foi ajuizada uma ADIn contra um convênio do Confaz [Conselho Nacional de Política Fazendária], que representa os estados, que é um órgão de deliberação dos estados, que submeteu as empresas do Simples às novas regras do e-commerce. De acordo com essas regras, o vendedor da mercadoria tem agora que pagar para o seu estado o imposto que seria devido ao estado de destino, onde está o consumidor. Isso traz complexidade na apuração e no recolhimento do imposto, e aumento de carga na origem. Exatamente por ferir a lei do Simples Nacional é que houve o deferimento de uma medida liminar, pelo ministro Dias Toffoli, suspendendo a aplicação das novas regras do e-commerce às empresas do Simples. Então, por enquanto, a medida liminar resguarda as empresas do Simples e aguarda-se agora o julgamento do Plenário do STF dessa questão.