No Brasil, a simples menção a um aumento nos impostos é garantia de turbulência para o governo. No caso do tributo sobre grandes fortunas, previsto na Constituição Federal e jamais aplicado, o tema só foi lembrado nas eleições deste ano por partidos de esquerda como PSOL e PSTU. Durante a campanha, Dilma Rousseff nem ousou pisar no terreno espinhoso. Nos países desenvolvidos, cujas fortunas chegam a superar em seis vezes a renda nacional, a criação de taxas para limitar os ganhos de capital já começou. Em 2012, a França aprovou uma alíquota de 75% sobre as maiores riquezas do país.
Não à toa, trata-se da terra natal de Thomas Piketty, economista alçado ao status de celebridade após entrar para a lista dos autores mais vendidos do New York Times por seu livro O Capital No Século XXI, lançado no Brasil pela editora Intrínseca. O sucesso explica-se não apenas pela densidade de sua base de dados, responsável por atestar o grande aumento da desigualdade de renda nos países ricos do Ocidente a partir da década de 1970. O livro inspira-se na tradição historiográfica francesa ao enxergar política, economia e cultura como dimensões integradas, e as relaciona com notável erudição. Por esse motivo, Piketty se vê mais como um cientista social e menos como um economista.
De passagem pelo Brasil, o pesquisador concedeu uma entrevista a CartaCapital. Simpático, fez questão de reiterar inúmeras vezes a necessidade dos países adotarem impostos mais onerosos às grandes fortunas para impedir a acumulação crescente dos 10% mais ricos no planeta. “A limitação da concentração é a saída para fazer da propriedade privada algo temporário”, diz. “É como dizer: ‘Você é o dono, mas não para sempre. Se você continuar investindo e trabalhando, poderá manter essa propriedade. Se mantiver seu capital parado, iremos distribuí-lo.”.
Afinado com a realidade política e econômica brasileira, Piketty defende o aumento de impostos sobre as heranças no País, até 10 vezes inferiores aos da Alemanha e dos Estados Unidos, e critica o grande volume de tributos indiretos, a alta taxa de juros e a falta de transparência nos dados da Receita Federal para grandes fortunas. Sobre programas como o Bolsa-Família, defende sua importância na redução da pobreza, mas considera ainda mais relevante a política de valorização do salário mínimo. A dificuldade em debater o aumento dos impostos sobre riqueza e patrimônio no país o surpreende. “Não discuti-los no Brasil é uma loucura. Todos os países têm impostos sobre herança muito superiores ao brasileiro. Você não precisa ser de esquerda para defender essa medida. Por acaso Angela Merkel ou David Cameron são de esquerda?”
CartaCapital: Professor, um dos aspectos mais interessantes de seu livro é o diálogo apresentado entre a economia e as outras humanidades, em especial a história. Há uma forte base da história social de Fernand Braudel e Geroges Duby em seu trabalho. Trata-se de uma abordagem rara atualmente. Por que é tão difícil encontrar estudos econômicos interdisciplinares no contexto atual?
Thomas Piketty: Eu estou muito feliz que você diga isso, pois eu gostaria que meu trabalho se situasse na tradição de Braudel e outros historiadores franceses. Em 1995, deixei o MIT, nos Estados Unidos, para retornar à França, e fui para a Ecóle de Hautes Etudes en Ciencies Sociales, onde Braudel era o presidente, havia grandes historiadores, sociólogos como Pierre Bourdieu. Mas também fui influenciado por economistas anglo-saxônicos como Simon Kuznets, que foi um dos pioneiros na coleta de dados sobre distribuição. Eu tento combinar essas duas tradições. As fronteiras entre economia, história e sociologia são tênues demais. A divisão é bem menos clara do que os economistas imaginar ser. Me vejo mais como um cientista social.
CC: Seu livro mostra como as duas guerras mundiais e suas consequências econômicas proporcionaram uma forte distribuição de renda. Todavia, em momentos de maior harmonia comercial e econômica entre as potências, como ocorreu na Belle Époque do fim do Século XIX e está ocorrendo atualmente, a riqueza acumulada pode superar e muito a renda nacional. Karl Marx não estava certo sobre o acúmulo infinito de capital ao menos em momentos de paz?
TP: Acho que ele estava um pouco certo, mas também errado em alguns pontos. No tempo em que ele escreveu, havia uma grande acumulação de capital e toda a nossa base de dados indica uma longa estagnação dos salários no Reino Unido e na França, entre 1800 e 1870, mesmo com a revolução industrial. Por isso, foi uma observação tão forte. Mas vejo erros em alguns pontos. A sua primeira limitação é o que ocorreria após a abolição da propriedade privada. Os países que o fizeram não foram capazes de organizar a sociedade e o Estado, foi um grande desastre. É fácil perceber o tamanho da acumulação de capital excessiva, mas é difícil pensar nas boas e democráticas soluções para limitar o poder do capital, entre elas o estabelecimento de impostos progressivos.
Não é por conta do desastre das experiências socialistas que precisamos parar de pensar nisso. A limitação da concentração da riqueza é uma saída para fazer da propriedade privada algo temporário. É como dizer “você é o dono, mas não para sempre. Os impostos vão tirar parte de sua propriedade ao longo do caminho. Se continuar a investir e trabalhar, poderá manter essa propriedade, mas se mantiver seu capital parado, iremos distribuí-lo”.
CC: No Brasil, a discussão do imposto sobre grandes fortunas é vista por muitos como uma agenda radical da esquerda. Na campanha eleitoral, Um dos únicos partidos a tocar abertamente no assunto foi o PSOL, cuja representação no Congresso é tímida. O senhor considera a proposta de esquerda?
TP: O Brasil poderia ter um sistema de imposto mais progressivo. O sistema é bastante regressivo, com altas taxas sobre o consumo para amplos setores da sociedade, enquanto os impostos diretos são relativamente pequenos. As taxas para as maiores rendas é de pouco mais de 30%, é tímido para os padrões internacionais. Países capitalistas taxam as principais rendas em 50% ou mais. Os impostos sobre herança e transmissão de capital são extremamente reduzidos, apenas 4%. Nos Estados Unidos é 40%, na Alemanha é 40%. Não discutir a cobrança de impostos sobre a riqueza no Brasil é uma loucura. É tudo muito ideológico. Todos os países têm imposto sobre herança muito superiores ao brasileiro. Você não precisa ser de esquerda para defender essa medida. Por acaso Angela Merkel ou David Cameron são de esquerda?
O Brasil precisa de um sistema mais progressivo de impostos. Deveria haver uma redução de impostos indiretos. O PT poderia ir nessa direção, é uma forma de ter um sistema mais transparente e trazer mais confiança para o governo. Eu entendo que o PT está buscando um novo projeto para este mandato. Uma grande reforma tributária seria importante.
CC: O caso francês é uma referência?
TP: O imposto sobre a fortuna é uma evolução importante. O problema na França e na Europa é que só agora estamos mudando para um transmissão automática de informação entre os países sobre ativos financeiros transnacionais. Até agora, se você tinha uma conta bancária na Suíça, a receita francesa não possuía a informação. É muito difícil controlar a cobrança de impostos em um continente com tamanha integração econômica e fluxos livres de capital. É necessário mais cooperação, e acho que vamos seguir nesta direção.
CC: No debate da USP, na quarta 26, o senhor discutiu suas ideias com André Lara Resende, ex-presidente do BNDES no governo Fernando Henrique Cardoso, e Paulo Guedes, um dos fundadores do instituto Millenium, dois economistas de posição neoliberal e contra impostos sobre a riqueza. É um tipo de reação comum que o senhor tem testemunhado?
TP: Sempre há grupos de pessoas com diferentes reações. Muitas pessoas no Ocidente querem adiar o imposto sobre a riqueza. Eu entendo que os dois economistas com quem debati são também homens de negócios, talvez não economistas bilionários, mas eles querem adiar o máximo possível. Eles são a favor de um aumento dos impostos sobre herança, o que já é algo. O que me surpreende é ter conhecido muita gente a favor do imposto sobre herança, mas não ver ações concretas neste sentido.
CC: O senhor também comentou no debate sobre suas dificuldades em acessar os dados anuais consolidados da Receita Federal no Brasil, principal fonte de sua pesquisa em 20 países. Quais são os maiores entraves?
TP: Quando há apenas o sistema de pesquisas domiciliares para se medir a distribuição de renda, você tende a subestimar a desigualdade. Os 10% mais ricos em particular não são bem registrados em pesquisas com famílias. Na maior parte dos países, quando há imposto de renda, os governos publicam balanços anuais detalhados. No Brasil, o governo não está publicando estas informações de forma transparente. Fomos capazes de encontrar os balanços de imposto de renda entre 1963 e 1999. A partir desse ano a base parece ter desaparecido. Recentemente, algum acesso foi dado a um grupo de economistas brasileiros, do professor Marcelo Medeiros, da UnB, relativo ao período de 2006 a 2012. O fim da publicação da base de dados em papel pode ter contribuído para isso. Muitas vezes há mais restrição para acessar os dados informatizados.
Em termos gerais, há uma falta de transparência na base de dados do imposto de renda no Brasil. As conclusões preliminares de Medeiros mostram um nível de desigualdade bem maior do que aquele aferido pelas pesquisas domiciliares. Ao tomar como referencia os dados da receita entre 2006 e 2012, houve inclusive um aumento na concentração dos 10% mais ricos, que saltou de 50% para 55% da renda total.
CC: Embora não seja tanto o foco da sua pesquisa, como o senhor vê os programas de transferência de renda no Brasil como o Bolsa Família?
TP: Olho bastante para base a pirâmide. Me preocupo muito no livro com os 50% mais pobres. O Bolsa Família tem sido um imenso sucesso, o que contribui para a redução da extrema pobreza e o aumento da renda dos mais pobres. A parte dos impostos tem peso em meu livro, mas a transferência também. No caso brasileiro, mais importante ainda é a política de valorização do salário mínimo. Isso foi muito positivo. Quaisquer que sejam os dados, a diminuição da miséria no Brasil é um fato, pelas políticas introduzidas pelo PT. Mas é possível ainda que os 10% mais ricos tenham ampliado sua distância. Pode ser ter ao mesmo tempo uma diminuição da pobreza e um aumento da desigualdade. É um erro imaginar que o Brasil já fez o suficiente em termos de redução da pobreza.
CC: O Brasil tem uma taxa de juros alta, superior a 11%. Quais os riscos desse alto patamar para o futuro da distribuição de riqueza no País?
TP: Há limites com o que você pode fazer com política monetária. Precisamos de mais políticas e reformas fiscais. Inflação pode ser importante em alguns casos para distribuir renda, mas muitas vezes não têm funcionado. O Brasil paga muito mais em juros do que está colocando no Bolsa Família. Se você realmente quer distribuir riqueza e limitar o acúmulo e concentração de capital, é necessário um sistema mais progressivo. Para mim, os impostos progressivos sobre riquezas privadas são uma forma civilizada de inflação. A inflação geralmente pune cidadãos com pouco dinheiro em suas contas bancarias.
CC: Qual a sua visão sobre o sistema de Bretton Woods hoje e qual o potencial do banco dos Brics, recém-criado?
TP: Precisamos de um sistema multipolar e faz sentido uma instituição coordenada pelos Brics. Também acredito que esse sistema deveria envolver uma Europa mais forte e o fortalecimento do Euro. Não é bom ter apenas dois países hegemônicos. O poder do dólar é bom para os Estados Unidos, mas não para o resto do mundo. Especialmente pelo sistema legal por trás do dólar. Recentemente, a Argentina teve de pagar uma dívida bilionária da noite para o dia. Na França, o maior banco, o BNP Paribas, foi subitamente acionado a pagar uma multa enorme pelo sistema judicial norte-americano. Isso é errado. Nós todos nos beneficiaríamos de um sistema multipolar, com alternativas. Se você não está feliz com o dólar e o sistema jurídico por trás da moeda, você deve poder recorrer a outros sistemas.
Fonte: Carta Capital